sábado, 3 de janeiro de 2015

É pelos frutos que se conhece a árvore


             
  Minha mãe nasceu e cresceu em uma cidade muito pequena, no interior do Maranhão. Era uma cidade muito pobre, e as condições de vida eram muito ruins. Como somos uma família bastante assimilada por conta das perseguições contra os judeus, meus bisavós, avós, etc, frequentavam uma igreja ali nessa cidade, era uma Igreja Assembléia de Deus. A realidade dentro da igreja era extremamente rígida, segundo minha mãe. Era tão complicado que ela cresceu achando que, metaforicamente, “D’us era um homem de barba longa e branca, com um cajado na mão, pronto pra cacetar e castigar todo mundo”. Os líderes do local usavam interpretações absurdas dos textos bíblicos em benefício próprio.

                Os membros desse grupo religioso eram constantemente punidos pela liderança da igreja. Se uma irmã usava um simples batom, era acusada de ser “pecadora”. Usar um perfume melhorzinho então nem pensar: se a esposa do pastor percebesse, a irmã era posta em “disciplina”. Se um irmão se vestia um pouco melhor, era posto em disciplina e a culpa que ele tinha era que ele era “vaidoso”. Se alguém questionasse a atitude da liderança, era taxado de “rebelde”. Entretanto, os pastores e líderes, em suas vidas particulares viviam muito bem. Embora fossem raros na época, eles tinham automóveis, e eram carros bons para aquele tempo. Eles viviam integralmente do trabalho religioso, tinham seus salários pagos completamente pelo dízimo de quem frequentava aquele grupo religioso. É claro que ter um padrão de vida justo é muito bom, dificuldades físicas nos atrapalham a servir a D’us e Maimonides mesmo ensinava isso. Mas como um pastor podia ter um padrão de vida muito melhor que os membros que frequentavam sua igreja? O pastor recebia o dízimo de pessoas às vezes muito pobres e que até mesmo passavam fome. Os membros da igreja moravam em bairros horríveis e muito pobres, cheios de violência, enquanto o líder tinha um bela casa, e nela tinha todo o tipo de luxo daquele tempo. Será que isso é justo? Se alguém quiser ter luxos, tem todo o direito de ter. Mas que trabalhe para isso. Existem muitos líderes religiosos, como pastores, rabinos, etc, que além de exercerem o serviço religioso também tem seus empregos próprios empregos, sendo, durante a semana, profissionais liberais, funcionários púbicos, professores, médicos, etc. Além de contribuir para a sociedade, não são pesados para suas próprias congregações. Aos que vivem integralmente de seu ministério religioso é recomendável que tenham um padrão de vida compatível com o padrão de vida das pessoas que frequentam o local ao qual lideram. Isso é também “fugir da aparência do mal”.

                Ali naquele local que minha família frequentava, constantemente os membros passavam por humilhações, partidas da própria liderança. Dentro da tradição judaica, é enfatizado fortemente sobre a proibição de humilhar alguém. Vovó contou-me sobre uma mulher que não podia ter filhos. Por conta disso, ela foi considerada ali na igreja como uma mulher que carregava algum tipo de grave maldição. Isso me faz lembrar aquelas religiões tribais africanas, em que mulheres que não tinham filhos eram expulsas da convivência com a comunidade, eram extremamente humilhadas e além de carregar o sofrimento de não poderem ter filhos, tinham que carregar humilhação pública imposta pela liderança da tribo por conta de ela não poder ter filhos. E como é isso na tradição judaica? Diversas mulheres que não podiam engravidar eram na verdade mulheres elevadíssimas espiritualmente! Sarah, Raquel, Ana, a mãe de Sansão, entre outras, eram mulheres que não podiam ter filhos. E isso não era algo do tipo “D’us está te castigando, você deve ter cometido um grave pecado para isso ter acontecido” ou coisa semelhante. O Eterno tem seus planos. E essas mulheres, embora fossem estéreis eram mais elevadas espiritualmente do que muitas mulheres que tinham muitos filhos. As mulheres não são como vacas que tem que parir um bezerro por ano, e as vacas que não são capazes de parir um bezerro por ano são abatidas. Cada um tem sua própria medida, que o Eterno abençoe a todos nós. Que o Eterno nos livre de aumentar a dor dos outros, mas que possamos ser pessoas que ajudam os outros. Que nossa compaixão e benevolência sejam maiores que nossa rigidez.

                Era complicado também quando a igreja passava por alguma dificuldade. Se havia dificuldade financeira, a culpa era dos membros que não oravam o suficiente. Ou então, a culpa era dos membros por eles terem falta de santidade. A culpa era sempre dos membros, nunca da liderança. A liderança era aparentemente um exemplo de santidade a ser seguido sem nunca ser questionado. Eles se esqueceram de que somos todos humanos e todos sujeitos a ter falhas. Ninguém é perfeito. Podemos nos esforçar para melhorar e devemos fazer isso, mas até o nosso último suspiro seremos incomodados por nossa própria inclinação ruim. Como disse o Messias, “por que me chama de bom? Bom é só o meu Pai”. E é muito interessante ver como é isso na tradição rabínica. Por exemplo, o rabino Nilton Bonder, no livro “A Cabalá da Inveja”, na página 113, diz o seguinte:

“Quando você acusa alguém e pronuncia um julgamento sobre esta pessoa, dizendo que ela merece isto ou aquilo, está pronunciando julgamento sobre si mesmo. Apesar do erro cometido pelo outro parecer estranho à sua maneira de ser e de se comportar, você já terá cometido de forma semelhante este mesmo erro. Se você acusa alguém de, por exemplo, idolatria, você será, com certeza, culpado por orgulho – que é, em si, uma forma de idolatria. E seu erro pode ser maior que aquele que você aponta, pois o julgamento sobre você será ainda mais severo e crítico. Porém, se você justifica aquele que está errado, desculpando-o pelo fato de estar ainda aprisionado à sua encarnação e não poder controlar seus desejos, então você estará justificando a si mesmo.

Assim, semelhantemente, quando acusamos alguém de “falta de santidade” significa apenas que há falta de santidade em nossas vidas também, de alguma forma. Se acusarmos alguém de “não orar o suficiente” significa que de alguma forma também não o fazemos. Talvez, viver uma vida de santidade tenha muito mais a ver com a forma que nos postamos diante da vida, se agimos de forma ética, se respeitamos o próximo a cuidamos da Criação. Vivemos numa era em “ter é ser”, gostamos muito mais da aparência externa das coisas do que elas realmente são. Chimpanzés não podem fazer caridade, não podem dar alimento aos pobres, não podem fazer uma porção de coisas que o Eterno nos ordenou fazer. Entretanto, qualquer chimpanzé pode vestir um terno, ou uma saia até o calcanhar, ou ir pra igreja todos os domingos. É claro que se vestir bem e decentemente é muito importante, mas a vida não se resume ao modo que nos vestimos ou àquilo que comemos. De que adianta se vestir de maneira “santa” ou de maneira “kosher” e sair por aí humilhando todo mundo? Que o Eterno nos livre de viver uma vida de aparências, de parecer uma coisa por fora e na verdade viver algo bastante diferente daquilo que falamos com nossos lábios.

Tudo isso me faz lembrar sobre a Halachá. A forma de aplicar a Halachá pode ser explicada com a seguinte metáfora. Imagine que, metaforicamente, um pitbull queira servir a D’us. Por conta de sua natureza selvagem e violenta, esse pitbull precisa de barreiras para se controlar. Assim, a Halachá que um pitbull deve aplicar a si mesmo é semelhante à uma focinheira de couro forte e reforçada com uma coleira de ferro maciço. Algo muito forte e pesado, para que o pitbull possa se controlar e servir a D’us da melhor forma possível. Se esse pitbull aplica essa rigidez a ele mesmo, ele faz muito bem. Agora, imagine outra situação: esse mesmo pitbull que aplica a si mesmo uma halachá rígida como uma focinheira e coleira de ferro encontra um gatinho da raça angorá, uma raça conhecida por ser dócil e gostar muito de contato social. Daí, esse gatinho também quer servir ao Eterno. Será que esse gatinho que tem uma natureza completamente diferente do pitbull precisa de uma focinheira e coleira de ferro maciço? É claro que não. E o pitbull comete um grande pecado se ele quiser impor o uso de sua própria focinheira e coleira de ferro no gatinho. A focinheira e a coleira de ferro são cercas necessárias ao pitbull, mas não são necessárias ao gatinho. Se a focinheira e a coleira de ferro forem coladas no gatinho angorá, ele viverá uma vida infeliz e terrível, trará apenas sofrimento desnecessário à vida dele. E todos nós temos um lado pitbull e um lado gatinho dentro de nós mesmos. Todos nós temos um lado mais fraco e propenso a cometer determinados tipos de pecado e outro lado em que somos mais fortes. Por exemplo, uma pessoa que tem problemas com álcool não come nem mesmo um bombom de licor, pois isso pode ser motivo de grande tropeço para ele. Mas ele querer impor isso a todo mundo, é um grande pecado, pois ele coloca um julgo impossível de carregar em cima dos outros. Temos o dever de aplicar cercas às nossas próprias vidas, mas cometemos um grande erro ao querer que os outros vivam do mesmo modo que vivemos, que apliquem às suas próprias vidas as mesmas cercas que nos impomos e com a mesma rigidez. O julgo do Masshiach existe, mas ele é leve. O Eterno libertou um povo que era escravo no Egito para que ele fosse livre e não para se submeter a um novo tipo de escravidão, a um novo tipo de “humanos dominando humanos”. Escolher viver de forma mais rígida e limita não necessariamente é um sinal de mais santidade, embora possa ser. Escolher viver de forma mais limitada pode ser um sinal de que na verdade a pessoa tem um lado pitbull muito maior e mais forte que seu lado gatinho e assim precisa de muita rigidez em sua conduta – e essa pessoa faz muito bem em se aplicar uma conduta mais rígida, mas comete um grande pecado ao forçar os outros a viver de seu mesmo modo rígido.

                O Masshiach ensinou que é “pelos frutos que se conhece a árvore”. Um pitbull que serve ao Eterno deve ser um pitbull que produza bons frutos. Um pitbull que diz que serve ao Eterno com seus lábios, mas que ao olharmos suas atitudes não verificamos isso é um pitbull no mínimo mentiroso. Um pitbull que diz amar a D’us, mas continua mordendo todo mundo por aí, não serve a D’us. Se nós não cuidamos das pessoas que nós vemos, como vamos amar a D’us, a Quem não vemos?

                Edgard MacFraggin’

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