Minha
mãe nasceu e cresceu em uma cidade muito pequena, no interior do Maranhão. Era
uma cidade muito pobre, e as condições de vida eram muito ruins. Como somos uma
família bastante assimilada por conta das perseguições contra os judeus, meus
bisavós, avós, etc, frequentavam uma igreja ali nessa cidade, era uma Igreja
Assembléia de Deus. A realidade dentro da igreja era extremamente rígida, segundo
minha mãe. Era tão complicado que ela cresceu achando que, metaforicamente,
“D’us era um homem de barba longa e branca, com um cajado na mão, pronto pra
cacetar e castigar todo mundo”. Os líderes do local usavam interpretações
absurdas dos textos bíblicos em benefício próprio.
Os
membros desse grupo religioso eram constantemente punidos pela liderança da
igreja. Se uma irmã usava um simples batom, era acusada de ser “pecadora”. Usar
um perfume melhorzinho então nem pensar: se a esposa do pastor percebesse, a
irmã era posta em “disciplina”. Se um irmão se vestia um pouco melhor, era
posto em disciplina e a culpa que ele tinha era que ele era “vaidoso”. Se
alguém questionasse a atitude da liderança, era taxado de “rebelde”.
Entretanto, os pastores e líderes, em suas vidas particulares viviam muito bem.
Embora fossem raros na época, eles tinham automóveis, e eram carros bons para
aquele tempo. Eles viviam integralmente do trabalho religioso, tinham seus
salários pagos completamente pelo dízimo de quem frequentava aquele grupo religioso.
É claro que ter um padrão de vida justo é muito bom, dificuldades físicas nos
atrapalham a servir a D’us e Maimonides mesmo ensinava isso. Mas como um pastor
podia ter um padrão de vida muito melhor que os membros que frequentavam sua
igreja? O pastor recebia o dízimo de pessoas às vezes muito pobres e que até
mesmo passavam fome. Os membros da igreja moravam em bairros horríveis e muito
pobres, cheios de violência, enquanto o líder tinha um bela casa, e nela tinha
todo o tipo de luxo daquele tempo. Será que isso é justo? Se alguém quiser ter luxos,
tem todo o direito de ter. Mas que trabalhe para isso. Existem muitos líderes
religiosos, como pastores, rabinos, etc, que além de exercerem o serviço
religioso também tem seus empregos próprios empregos, sendo, durante a semana,
profissionais liberais, funcionários púbicos, professores, médicos, etc. Além
de contribuir para a sociedade, não são pesados para suas próprias congregações.
Aos que vivem integralmente de seu ministério religioso é recomendável que tenham
um padrão de vida compatível com o padrão de vida das pessoas que frequentam o
local ao qual lideram. Isso é também “fugir da aparência do mal”.
Ali
naquele local que minha família frequentava, constantemente os membros passavam
por humilhações, partidas da própria liderança. Dentro da tradição judaica, é
enfatizado fortemente sobre a proibição de humilhar alguém. Vovó contou-me
sobre uma mulher que não podia ter filhos. Por conta disso, ela foi considerada
ali na igreja como uma mulher que carregava algum tipo de grave maldição. Isso
me faz lembrar aquelas religiões tribais africanas, em que mulheres que não tinham
filhos eram expulsas da convivência com a comunidade, eram extremamente
humilhadas e além de carregar o sofrimento de não poderem ter filhos, tinham
que carregar humilhação pública imposta pela liderança da tribo por conta de
ela não poder ter filhos. E como é isso na tradição judaica? Diversas mulheres
que não podiam engravidar eram na verdade mulheres elevadíssimas
espiritualmente! Sarah, Raquel, Ana, a mãe de Sansão, entre outras, eram
mulheres que não podiam ter filhos. E isso não era algo do tipo “D’us está te
castigando, você deve ter cometido um grave pecado para isso ter acontecido” ou
coisa semelhante. O Eterno tem seus planos. E essas mulheres, embora fossem
estéreis eram mais elevadas espiritualmente do que muitas mulheres que tinham
muitos filhos. As mulheres não são como vacas que tem que parir um bezerro por
ano, e as vacas que não são capazes de parir um bezerro por ano são abatidas. Cada
um tem sua própria medida, que o Eterno abençoe a todos nós. Que o Eterno nos
livre de aumentar a dor dos outros, mas que possamos ser pessoas que ajudam os
outros. Que nossa compaixão e benevolência sejam maiores que nossa rigidez.
Era
complicado também quando a igreja passava por alguma dificuldade. Se havia
dificuldade financeira, a culpa era dos membros que não oravam o suficiente. Ou
então, a culpa era dos membros por eles terem falta de santidade. A culpa era
sempre dos membros, nunca da liderança. A liderança era aparentemente um
exemplo de santidade a ser seguido sem nunca ser questionado. Eles se
esqueceram de que somos todos humanos e todos sujeitos a ter falhas. Ninguém é
perfeito. Podemos nos esforçar para melhorar e devemos fazer isso, mas até o
nosso último suspiro seremos incomodados por nossa própria inclinação ruim. Como
disse o Messias, “por que me chama de bom? Bom é só o meu Pai”. E é muito
interessante ver como é isso na tradição rabínica. Por exemplo, o rabino Nilton
Bonder, no livro “A Cabalá da Inveja”, na página 113, diz o seguinte:
“Quando você acusa alguém e
pronuncia um julgamento sobre esta pessoa, dizendo que ela merece isto ou
aquilo, está pronunciando julgamento sobre si mesmo. Apesar do erro cometido
pelo outro parecer estranho à sua maneira de ser e de se comportar, você já terá
cometido de forma semelhante este mesmo erro. Se você acusa alguém de, por
exemplo, idolatria, você será, com certeza, culpado por orgulho – que é, em si,
uma forma de idolatria. E seu erro pode ser maior que aquele que você aponta,
pois o julgamento sobre você será ainda mais severo e crítico. Porém, se você
justifica aquele que está errado, desculpando-o pelo fato de estar ainda
aprisionado à sua encarnação e não poder controlar seus desejos, então você estará
justificando a si mesmo.”
Assim, semelhantemente, quando
acusamos alguém de “falta de santidade” significa apenas que há falta de
santidade em nossas vidas também, de alguma forma. Se acusarmos alguém de “não orar
o suficiente” significa que de alguma forma também não o fazemos. Talvez, viver
uma vida de santidade tenha muito mais a ver com a forma que nos postamos
diante da vida, se agimos de forma ética, se respeitamos o próximo a cuidamos
da Criação. Vivemos numa era em “ter é ser”, gostamos muito mais da aparência
externa das coisas do que elas realmente são. Chimpanzés não podem fazer
caridade, não podem dar alimento aos pobres, não podem fazer uma porção de
coisas que o Eterno nos ordenou fazer. Entretanto, qualquer chimpanzé pode
vestir um terno, ou uma saia até o calcanhar, ou ir pra igreja todos os
domingos. É claro que se vestir bem e decentemente é muito importante, mas a
vida não se resume ao modo que nos vestimos ou àquilo que comemos. De que
adianta se vestir de maneira “santa” ou de maneira “kosher” e sair por aí
humilhando todo mundo? Que o Eterno nos livre de viver uma vida de aparências,
de parecer uma coisa por fora e na verdade viver algo bastante diferente
daquilo que falamos com nossos lábios.
Tudo isso me
faz lembrar sobre a Halachá. A forma de aplicar a Halachá pode ser explicada
com a seguinte metáfora. Imagine que, metaforicamente, um pitbull queira servir
a D’us. Por conta de sua natureza selvagem e violenta, esse pitbull precisa de
barreiras para se controlar. Assim, a Halachá que um pitbull deve aplicar a si
mesmo é semelhante à uma focinheira de couro forte e reforçada com uma coleira de
ferro maciço. Algo muito forte e pesado, para que o pitbull possa se controlar
e servir a D’us da melhor forma possível. Se esse pitbull aplica essa rigidez a
ele mesmo, ele faz muito bem. Agora, imagine outra situação: esse mesmo pitbull
que aplica a si mesmo uma halachá rígida como uma focinheira e coleira de ferro
encontra um gatinho da raça angorá, uma raça conhecida por ser dócil e gostar
muito de contato social. Daí, esse gatinho também quer servir ao Eterno. Será
que esse gatinho que tem uma natureza completamente diferente do pitbull
precisa de uma focinheira e coleira de ferro maciço? É claro que não. E o
pitbull comete um grande pecado se ele quiser impor o uso de sua própria
focinheira e coleira de ferro no gatinho. A focinheira e a coleira de ferro são
cercas necessárias ao pitbull, mas não são necessárias ao gatinho. Se a
focinheira e a coleira de ferro forem coladas no gatinho angorá, ele viverá uma
vida infeliz e terrível, trará apenas sofrimento desnecessário à vida dele. E
todos nós temos um lado pitbull e um lado gatinho dentro de nós mesmos. Todos
nós temos um lado mais fraco e propenso a cometer determinados tipos de pecado
e outro lado em que somos mais fortes. Por exemplo, uma pessoa que tem
problemas com álcool não come nem mesmo um bombom de licor, pois isso pode ser
motivo de grande tropeço para ele. Mas ele querer impor isso a todo mundo, é um
grande pecado, pois ele coloca um julgo impossível de carregar em cima dos
outros. Temos o dever de aplicar cercas às nossas próprias vidas, mas cometemos
um grande erro ao querer que os outros vivam do mesmo modo que vivemos, que
apliquem às suas próprias vidas as mesmas cercas que nos impomos e com a mesma
rigidez. O julgo do Masshiach existe, mas ele é leve. O Eterno libertou um povo
que era escravo no Egito para que ele fosse livre e não para se submeter a um
novo tipo de escravidão, a um novo tipo de “humanos dominando humanos”. Escolher
viver de forma mais rígida e limita não necessariamente é um sinal de mais
santidade, embora possa ser. Escolher viver de forma mais limitada pode ser um
sinal de que na verdade a pessoa tem um lado pitbull muito maior e mais forte
que seu lado gatinho e assim precisa de muita rigidez em sua conduta – e essa
pessoa faz muito bem em se aplicar uma conduta mais rígida, mas comete um
grande pecado ao forçar os outros a viver de seu mesmo modo rígido.
O
Masshiach ensinou que é “pelos frutos que se conhece a árvore”. Um pitbull que
serve ao Eterno deve ser um pitbull que produza bons frutos. Um pitbull que diz
que serve ao Eterno com seus lábios, mas que ao olharmos suas atitudes não verificamos
isso é um pitbull no mínimo mentiroso. Um pitbull que diz amar a D’us, mas
continua mordendo todo mundo por aí, não serve a D’us. Se nós não cuidamos das
pessoas que nós vemos, como vamos amar a D’us, a Quem não vemos?
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