segunda-feira, 19 de maio de 2014

A Dignidade de ser Diferente


Artigo baseado nos livros “A Dignidade da diferença – Como evitar o Choque de Civilizações”, “Para Curar um Mundo Fraturado – a Ética da Responsabilidade”, ambos do Rabino Lord Jonathan Sacks, “A Rosa de Treze Pétalas: Introdução à Cabala” do Rabino Adin Steinsaltz, “O Amor é minha Religião” do Rabino David Aaron e “A História do Povo de Israel” do historiador e embaixador de Israel Sr. Abba Eban.

                Falar sobre diversidade numa era de pluralidade vastamente percebida pela globalização é um assunto realmente difícil e igualmente necessário. Diversos povos, em todas as eras, passaram por aqui sem sequer saber da existência de diversas civilizações. De nem mesmo saber das dificuldades de outros povos, ou das mazelas que estes enfrentaram. Mas graças aos meios de comunicação instantânea, dificilmente alguém desconhece das mazelas da África, da pobreza da Índia, das guerras do Oriente Médio, das plantações de coca da América do Sul, etc. E nesse momento torna-se possível também uma expansão do “ame ao próximo como a si mesmo”. Hoje é possível com apenas um clique do mouse mandar dinheiro para vítimas de catástrofes naturais ou vítimas da fome em um continente distante. Existem novas possibilidades de se fazer o bem. Mas é justamente essa possibilidade por conta da proximidade que pode ser fonte também de confrontos sangrentos entre povos e culturas.
                Dizem que judeus gostam bastante de perguntas. Então começarei com algumas delas: será que existe dignidade em ser cristão? Será que existe dignidade em ser muçulmano? Ou mesmo judeu? Ou ateu? Ou homossexual? O Rab. Jonathan Sacks chama-nos atenção dizendo que “(a) diferença mais incomoda do que nos engradece”. Bom, pegando uma parte importante da história de Yeshua, um momento em que ele ratifica a Torá dizendo sobre os dois maiores mandamentos “O Eterno é Um, ame o Eterno de todo teu coração” e “ame ao próximo como a ti mesmo” (Mordechai “Marcos” 12:29-31) nos mostra qual deve ser a direção do nosso amor. O nosso amor deve olhar para fora. Deve olhar para um outro sempre, seja esse Outro o Eterno, bendito seja, seja o outro o nosso próximo. E se nos consideramos alguém ou algum povo ou devoto de determinada religião como inimigo, fica outro ensinamento de Yeshua: “ame teu inimigo” (Matityahu “Mateus” 5:44). Nós devemos amar as pessoas, independentemente de credo ou etnia. E acredito que isso passa pelas vias de estender a mão e de não colocar um peso sobre os outros como condição para os amar. Uma forma que gosto de sintetizar o “ame o próximo como a si mesmo” é da seguinte forma: Sinta de forma real a dor virtual de teu próximo. A dor do outro não pode ser sentida fisicamente por um terceiro. Mas em um nível virtual, ou mesmo espiritual, pode ser sentida. E isso nos impulsiona a agir. Agir para socorrer, estender a mão, estancar o sangramento do próximo, seja sangue no sentido físico como no emocional.
                Infelizmente, muitas vezes nós reinterpretamos ou mesmo nos esquecemos dos ensinamentos preciosos da Torá. Nós medimos o outro tomando como padrão a nós mesmos. Se alguém age diferente de mim esse alguém está inexoravelmente errado. E isso nos trava e nos atrapalha. Talvez o ponto que isso mais ocorra seja justamente no ponto mais pessoal da fé: na colocação das cercas. As cercas, de pessoa pra pessoa, são diferentes, até mesmo pela sua natureza. Yeshua nos ensina que “não devemos julgar” os outros (Matityahu “Mateus” 7:1). Os mandamentos, como citei no início do texto, se referem a “amar” e não a “julgar”. Só o Eterno, bendito seja, pode julgar alguém. Ninguém mais.
                Mas então, o que é amar? Segundo o Rab. David Aaron, amar o próximo é semelhante ao ato cabalístico da Criação: nós devemos abrir um espaço em nós mesmos (um “tsimtsum” pessoal” por assim dizer) para que outro diferente de nós possa habitar. “No princípio havia apenas eu...” Ele e o Rab. Steinsaltz enfatizam a importância de não se perder a própria identidade e de reconhecer a identidade do outro. Do atrito de duas identidades distintas surge então a energia, as faíscas explosivas do amor. E isso faz todo sentido: se devemos “amar o próximo como a nós mesmos” como vamos respeitar a individualidade do outro se não respeitamos ou mesmo cultivamos nossa própria individualidade? O Rab. David Aaron coloca "Se digo 'sim' apenas porque não consigo dizer 'não', não estou em um relacionamento. Perdi minha liberdade, minha identidade e meu senso de individualidade. Por outro lado, se tenho vontade de dizer 'não' porque tenho necessidade de afirmar minha independência, não aprecio que somos na verdade um só. Por que dizer 'não' quando compartilhamos um ser? Aqui está uma oportunidade de expressar nossa unidade. Amor significa que sou capaz de dizer 'não', porque não sou você e você não é eu. No entanto, escolho dizer 'sim' porque somos um. Não há conflito ou competição, nenhuma luta por liderança absoluta. Embora sejamos indivíduos distintos e muito diferentes, somos um e nos amamos." Isso é bastante profundo.

                Se perdermos nossa individualidade, perdemos a nossa capacidade de cumprir nosso mazal, nosso destino. O Rab. Steinsaltz afirma que "a pessoa mais 'elevada' do mundo não pode cumprir a missão da pessoa mais 'rebaixada'"  Quando chegarmos ao Mundo Vindouro, o Eterno não nos perguntará algo do tipo “Fulano, por que você não foi como Moisés, como David, como Abraão, ou Isaac ou Jacó?” Ele nos perguntará “Fulano, por que você não foi Fulano?” Este é um ensinamento da Ética dos Pais. Muita das vezes somos intransigentes consigo mesmo. Somos fundamentalistas contra nossa individualidade e muito mais contra a individualidade dos outros.
                Por definição, fundamentalismo é “atitude de intransigência ou rigidez na obediência a determinados princípios ou regras”. Assim sendo, pode-se pensar em fundamentalismo judaico, cristão, muçulmano, ateu, LGBT, etc. Qualquer tipo de comportamento humano é passível de ser fundamentalista. Vemos um período assim na própria história do povo de Israel. No período entre a Revolta Macabéia e o nascimento de Yeshua, o poder passou dos gregos para os judeus, mas depois os judeus perdem sua soberania para os Romanos. E o que aconteceu nesse intervalo? Abba Eban coloca que esse período foi marcado pelas expansões territoriais engendradas pelo rei e sumo-sacerdote João Hircano, seguido posteriormente por seus filhos, que era sobrinho do próprio Judá Macabeu. Ele cobrava impostos pesados do povo e os investia em poderio militar. Chegou a anexar os territórios da Samaria, Transjordània e Iduméia. Além disso, forçou que esses povos dominados fossem obrigados a praticar o Judaísmo como religião, algo completamente proibido pela Torá, ou seja, de forçar alguma pessoa a cumprir a Torá. Isso teve um alto custo para o próprio povo judeu: Herodes era um idumeu que fora forçado a cumprir a Torá. Portanto, ele nutria um ódio todo especial contra o nosso povo e colocou esse ódio em prática. Pouco antes do nascimento de Yeshua, os saduceus armam contra o próprio povo e ajudam os Romanos a dominar sobre Israel. Talvez esse episódio da história de Israel seja bastante desconhecido, mas houve sim fundamentalismo judaico no passado. Na Idade Média vemos um forte fundamentalismo cristão, e mais recentemente, fundamentalismos islâmicos, político, ateu, LGBT, etc. Todos esses movimentos fundamentalistas são chamados pelo Rab. Sacks de o “Espírito de Platão”, ou seja, "o que é diferente de mim me ameaça, devo destruí-lo". E esse destruir o diferente é necessariamente “não amar o próximo”.
                A estrutura de pensamento que domina todo o ocidente, das religiões às ações políticas e científicas, é uma estrutura de pensamento grego. Oras, será que ao sair de uma estrutura de pensamento grega deve-se apenas colocar um recheio judaico? Ou será que é importante mudar a estrutura de pensamento de grega para judaica? Eu diria que não é apenas importante: é essencial. Vejamos agora a questão da diferença entre Mandamentos e Cercas. Mandamento é aquilo que a Torá diz que tem que ser, e não é discutível. As cercas são colocações pessoais, autolimitações, visando-se que não se saia do caminho proposto pela Torá. Assim, como exemplo, um ex-alcóolatra tem como cerca o nunca comer um bombom de licor, pois comer um desses pode-se tornar motivo de grande pecado para ele. Mas não é por isso que comer bombom de licor se torna um pecado: ele não pode exigir essa dieta de mais ninguém além dele mesmo. Quem tem dificuldade nessa área é ele, não os outros. Para muitos, comer um bombom de licor é um prazer lícito. Caso contrário, acaba-se entrando em doutrinas que fogem da Torá e que afirmam coisas do tipo “jogar futebol é pecado” ou “mulheres que usam maquiagem são pecadoras”. Isso é um completo absurdo. A Torá permite tudo isso. Mas além de se imporem regras absurdas, as pessoas querem que os outros as cumpram, colocando um peso desnecessário, um peso que está fora dos padrões da Torá nos outros. Ninguém fica mais elevado espiritualmente pelo simples fato de não usar bermuda, ou de não escutar determinado tipo de música ou ver determinado filme. Claro que ninguém irá de bermuda pra um Serviço da Sinagoga, nem irá escutar musicas ou assistir filmes que falem de idolatria. Entretanto, a Torá não nos proíbe de ir ao cinema, de escutar musicas de estilos diferentes e de usar bermudas. São exemplos simples, entretanto, bons exemplos. Se alguém se abstém de escutar Rock n' Roll, ótimo. Mas ele não pode exigir isso de mais ninguém, pois a Torá não proíbe escutar Rock. Entretanto, alguém que teme o Eterno não deve escutar músicas de Rock que falem de idolatria ou que blasfemem contra o Eterno – músicas que também existem no meio do Rock. Só como título de exemplo, existem vários judeus, até mesmo rabinos, que fazem parte de bandas de Rock (vide o chassídico Menachem Herman cantando “Sweet Home, Sweet Jerusalem” – clique aqui no link). Em Romanos 14:3, Sha’ul afirma que “quem come verduras não julgue o que come carne, nem vice-versa”. Creio que devemos ir por aí. Um outro exemplo: o que é pior? Fumar um cigarro ou comer carne de porco? Bom, a Torá proíbe categoricamente o comer porco, mas não nos proíbe de fumar. Existem diversos rabinos e judeus que fumam, por exemplo. Mas fumar pode-se tornar um grande pecado? Sim, pode. Fumar no Shabat e nas Santas Convocações é um grande pecado, pois é proibido acender fogo nesses dias.
             O Rabbi Akiva e seus discípulos exemplificam isso no lamentável episódio da praga de mortandade. Rabbi Akiva ensinava que devemos “amar ao próximo como a nós mesmos”. Então seus discípulos entenderam que “amar o próximo como a si mesmo” significava “não deixe o teu próximo errar”. Assim, se corrigiam a todo momento. Mas a coisa foi ficando mais séria, e, visando impedir que o próximo cometesse um erro, começaram a se agredir fisicamente. Isso desagradou o Eterno, e os discípulos começaram então a morrer, morrendo 24.000 deles, terminando essa praga em Lag BaOmer. E é esse tipo de erro que não devemos cometer. Não devemos colocar ou impor nossas próprias cercas nas demais pessoas.
                A Torá nos ensina que não devemos aprender sobre os costumes idólatras dos outros povos. Não deve haver sequer ecumenismo. Entretanto, não podemos desprezar os demais povos. E cada um deles deixou um boa contribuição para a humanidade, que nós judeus utilizamos. Os ternos (tão usados ternos pretos e camisas brancas) foram inventados por franceses católicos da corte do rei Luís XIV no século XVIII. Os chineses inventaram o papel-moeda, bússola, garfos, macarrão, carrinhos-de-mão, pipas, escova de dentes e papel-higiênico. Os árabes, o hábito de beber café, xampu e instrumentos cirúrgicos (muito semelhantes ao que usamos até hoje).  Protestantes criaram o automóvel e a caneta esferográfica. O Facebook e a lâmpada foram criados por ateus. Um hindu inventou o computador pessoal. Os gregos, a medicina e o método científico. Os óculos então devem ser  um dos objetos mais “pagãos” que existem: o vidro foi criado pelos egípcios, o óculos pelos gregos, sendo posteriormente aperfeiçoados por monges católicos e muçulmanos. Quem vos escreve usa óculos e talvez você que está lendo também.
                O Rab. Jonathan Sacks pondera que existe 1 versículo para "amar o próximo" e 36 versículos para amar o estrangeiro. Os sábios da Mishná afirmam que o canto do campo, as espigas caídas devem servir para os pobres, até mesmo os pobres de outros povos, ainda que estes sejam idólatras. Na Ética do Sinai temos o episódio de Pai Abraão e o idólatra de 70 anos de idade. Pai Abraão pede que este homem apenas agradeça o Eterno pela refeição que teve, mas ele se recusa. Abraão então o expulsa com raiva. O Eterno então pergunta a Abraão: “Eu tenho suportado esse idólatra habitar em Mim por 70 anos e você não pode suportá-lo por cinco minutos?” Quando os egípcios se afogaram, os anjos quiseram comemorar. Mas o Eterno os proibiu e lhes disse: “Minhas criaturas se afogaram e vocês estão celebrando?” O Eterno ama a todos os povos, Baruch HaShem.
      Assim, volto a minha pergunta inicial: existe dignidade em ser cristão? Existe dignidade em ser muçulmano? Ou mesmo judeu? Ou ateu? Ou homossexual? É claro que existe, em todos os casos. As pessoas não representam os erros de seus movimentos. Todas elas são a Imagem do Eterno. E será que existe dignidade em ser à Imagem do Eterno? É óbvio que sim. O Eterno nos deu liberdade. Quem somos nós para querer se colocar no lugar dEle, que Ele não permita, e querer podar a liberdade dos outros? Ainda, há espaço para o Bnei Noach no Judaísmo – os rabinos ensinam que não há necessidade de se tornar um judeu! Segundo o site do Chabad, o próprio Maimônides era o médico pessoal do Grande Vizir Alfadhil e do Sultão Saladin, ou seja ele cuidava da vida e da saúde desses lideres muçulmanos. Há dignidade em ser judeu, cristão, muçulmano, ateu, etc, pois há dignidade em ser a Imagem e Semelhança do divino.
O Rab. Sacks ensina que a grande diversidade de produtos que existe no Mercado o engrandece e não o diminui. Nossas diferenças também nos engrandecem: cada povo contribuiu com sua própria cultura para a humanidade. Ai de nós se todas indústrias produzissem os mesmos produtos. Esse exemplo serve para mostrar que nossas diferenças nos engrandecem, ensina o Rab. Sacks. As relações de comércio sempre foram uma alternativa à guerra.
E como usar a individualidade para amar o próximo? Aqui entra a criatividade. Creio que cada um tem seu próprio pedacinho do mundo pra consertar. Hoje a internet facilita muito isso também. Basta querer, procurar, se informar que as possibilidades de “colocar a mão na massa” surgem. Que HaShem nos ajude nesse sentido.

Edgard MacFraggin'