Talvez o título desse artigo seja, a princípio, um pouco chocante. Mas vamos juntos refletir sobre o tema. E vamos começar pelo amanhecer de cada dia. Todos os dias, ao acordarmos, agradecemos ao Eterno pela alma que Ele nos devolveu, mantendo-nos com vida. Uma possível tradução da reza que recitamos é essa: “Dou graças perante Ti, ó Rei vivo e existente, que devolveste a minha alma com piedade, grande é Tua fé em nós”. O Eterno, bendito seja, demonstra ter fé em nós, por isso Ele devolve, por assim dizer, a nossa alma todos os dias – na tradição rabínica, o momento em que dormimos é considerado como uma mini-morte. Mas justamente pelo Eterno acreditar que nós vamos nos tornar melhores, que vamos servi-Lo e fazer o bem é que Ele nos dá a oportunidade de continuarmos a viver.
Todas as criaturas vivas, mesmo que não tenham consciência disso, também recebem do Eterno suas almas todos os dias. Talvez possamos inferir disso que Ele também tem fé em todos nós, em toda a humanidade. Um ladrão pode deixar de roubar, um mentiroso pode se arrepender, um idólatra pode se tornar um servo do Eterno. Enquanto há vida, há possibilidade de Retorno, há possibilidade de Teshuvá. Mas se morrermos, as chances acabam. Depois da cova não mais nada que possamos fazer no Plano Físico.
Os rabinos ensinam que “Sem Torá não há Pão e sem Pão não há Torá”. Não é possível servir ao Eterno adequadamente padecendo necessidades físicas, beirando o leito de morte. Assim, como é que alguma pessoa retornará ao Eterno se tem a morte e o sofrimento como companhias constantes? Ainda mais, como essa pessoa vai querer servir a um D’us que seus próprios seguidores não são capazes de demonstrar amor aos que não pertencem ao seu próprio grupo? Como disse Yeshua, “amar nossos amigos é algo muito fácil, até os pagãos fazem isso - o difícil é amar nossos inimigos” e nós somos chamados a isso. Na parashá Vaietzé (Bereshit “Gênesis” 28:10 – 32:3), Jacó chama a uns pastores de origem étnica desconhecida de “meus irmãos” (Bereshit “Gênesis” 29:4). O Rabino Meir Melamed, em seu comentário sobre o versículo “ama o próximo como a ti mesmo” (Levítico 19:18), chama atenção de que nós devemos amar a todos os homens, pois o termo “irmãos” foi usado para não israelitas. E até mesmo os idólatras fazem parte desse “todos”. Existe uma enorme chance de que os pastores desconhecidos que Jacó chamou de “irmãos” fossem homens idólatras.
Na Torá, lemos sobre a destruição de uma geração e a destruição de uma cidade. Em ambos os casos, a destruição partiu do Eterno e não de mãos humanas. Antes do Dilúvio, Noé poderia ter anunciado para que o povo se arrependesse, mas não o fez. Por isso, foi considerado um “justo em sua geração”, e essa atitude dele foi criticada por vários rabinos. Antes da destruição de Sodoma-Gomorra, Abraão clama pela cidade ímpia. Ele se importou com a vida humana ali e rezou por eles, ainda que fossem idólatras. O Midrash nos conta que Abraão gostava de receber pessoas desconhecidas em sua casa e lhes oferecia uma refeição, apenas para que ao final dela as pessoas bendizessem o Nome do Eterno. Certa vez, ele recebeu em sua casa um homem idólatra de 70 anos de idade. Depois da refeição Abraão pediu que o homem bendizesse o Eterno, mas ele se recusou. Abraão perdeu a paciência e o
expulsou de sua tenda. O Eterno então chamou a atenção de Abraão: “Abraão, Eu tenho suportado esse homem idólatra viver em Mim mesmo por 70 anos e você não é capaz de suportá-lo por cinco minutos?” Se o Eterno permite que os idólatras vivam, é porque talvez haja esperança de que eles se convertam de seus caminhos. Se o Eterno assim age, quem somos nós para agirmos de forma diferente supostamente em Nome Dele? O Eterno não mandou que Jonas fosse até a cidade idólatra de Nínive anunciar que se arrependessem? E eles não foram salvos da destruição? Quanto ao amor, não há diferença entre o “guer” e o “gói”, entre o estrangeiro que ama ao Eterno e o Idólatra. Devemos amar a todos. O Rabino Lord Jonathan Sacks chama atenção para o fato de que Torá diz uma única vez “ama ao próximo como a ti mesmo” e 36 vezes “ama o estrangeiro”. Fazendo uma guematria rápida, se somarmos os algarismos temos que:
1 + 36 (1 vez “ama o próximo” + 36 vezes “ama o estrangeiro”) = 1 + 3 + 6 = 10,
ou seja, talvez possamos entender que nosso amor só é completo quando amamos a todos, sem distinção de etnia, religião, ou qualquer outra coisa, pois o número 10 faz alusão a algo que é completo. Imagine o peso que estará sobre nossas costas no Último Dia se negarmos amor a um idólatra? Se por conta da somatória de nossas atitudes em demonstrar amor e em lhes fazer caridade um deles morrer e nós formos responsáveis pela morte dele? E por ter morrido ele não ter feito Teshuvá? Que o Eterno nos livre disso. Em minha opinião, um idólatra bom é um idólatra vivo, pois apenas vivo ele terá a possibilidade de se arrepender e fazer Teshuvá. Depois de morto, o que poderá ser feito?
Se negamos estender a mão para quem quer que seja, estamos nos colocando como juízes sobre essa pessoa. E com o “mesmo peso que julgarmos, seremos julgados também”. Que o Eterno nos ensine a fazer Darkê Shalom, a viver “Caminhos de Paz”, como ensina o Rab. Jonathan Sacks, com todos os que nos cercam. Somos realmente proíbidos de participar de qualquer idolatria. Mas se até a vida animal é importante e temos diversos mandamentos quanto a eles, muito mais não temos em relação à preservação da vida humana?
Edgard MacFraggin’
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