Artigo baseado nos
livros “A Dignidade da diferença – Como evitar o Choque de Civilizações”, “Para
Curar um Mundo Fraturado – a Ética da Responsabilidade”, ambos do Rabino Lord
Jonathan Sacks, “A Rosa de Treze Pétalas: Introdução à Cabala” do Rabino Adin
Steinsaltz, “O Amor é minha Religião” do Rabino David Aaron e “A História do
Povo de Israel” do historiador e embaixador de Israel Sr. Abba Eban.
Falar
sobre diversidade numa era de pluralidade vastamente percebida pela
globalização é um assunto realmente difícil e igualmente necessário. Diversos
povos, em todas as eras, passaram por aqui sem sequer saber da existência de
diversas civilizações. De nem mesmo saber das dificuldades de outros povos, ou
das mazelas que estes enfrentaram. Mas graças aos meios de comunicação
instantânea, dificilmente alguém desconhece das mazelas da África, da pobreza
da Índia, das guerras do Oriente Médio, das plantações de coca da América do
Sul, etc. E nesse momento torna-se possível também uma expansão do “ame ao
próximo como a si mesmo”. Hoje é possível com apenas um clique do mouse mandar
dinheiro para vítimas de catástrofes naturais ou vítimas da fome em um
continente distante. Existem novas possibilidades de se fazer o bem. Mas é
justamente essa possibilidade por conta da proximidade que pode ser fonte também de
confrontos sangrentos entre povos e culturas.
Dizem
que judeus gostam bastante de perguntas. Então começarei com algumas delas: será
que existe dignidade em ser cristão? Será que existe dignidade em ser
muçulmano? Ou mesmo judeu? Ou ateu? Ou homossexual? O Rab. Jonathan Sacks chama-nos atenção dizendo
que “(a) diferença mais incomoda do que nos engradece”. Bom, pegando uma parte
importante da história de Yeshua, um momento em que ele ratifica a Torá dizendo
sobre os dois maiores mandamentos “O Eterno é Um, ame o Eterno de todo teu
coração” e “ame ao próximo como a ti mesmo” (Mordechai “Marcos” 12:29-31) nos
mostra qual deve ser a direção do nosso amor. O nosso amor deve olhar para
fora. Deve olhar para um outro sempre, seja esse Outro o Eterno, bendito seja,
seja o outro o nosso próximo. E se nos consideramos alguém ou algum povo ou
devoto de determinada religião como inimigo, fica outro ensinamento de Yeshua: “ame
teu inimigo” (Matityahu “Mateus” 5:44). Nós devemos amar as pessoas, independentemente
de credo ou etnia. E acredito que isso passa pelas vias de estender a mão e de não
colocar um peso sobre os outros como condição para os amar. Uma forma que
gosto de sintetizar o “ame o próximo como a si mesmo” é da seguinte forma: Sinta
de forma real a dor virtual de teu próximo. A dor do outro não pode ser sentida
fisicamente por um terceiro. Mas em um nível virtual, ou mesmo espiritual, pode
ser sentida. E isso nos impulsiona a agir. Agir para socorrer, estender a mão,
estancar o sangramento do próximo, seja sangue no sentido físico como no
emocional.
Infelizmente,
muitas vezes nós reinterpretamos ou mesmo nos esquecemos dos ensinamentos
preciosos da Torá. Nós medimos o outro tomando como padrão a nós mesmos. Se
alguém age diferente de mim esse alguém está inexoravelmente errado. E isso nos trava e nos atrapalha. Talvez o ponto que isso mais ocorra seja justamente no
ponto mais pessoal da fé: na colocação das cercas. As cercas, de pessoa pra
pessoa, são diferentes, até mesmo pela sua natureza. Yeshua nos ensina que “não
devemos julgar” os outros (Matityahu “Mateus” 7:1). Os mandamentos, como citei
no início do texto, se referem a “amar” e não a “julgar”. Só o Eterno, bendito
seja, pode julgar alguém. Ninguém mais.
Mas
então, o que é amar? Segundo o Rab. David Aaron, amar o próximo é semelhante ao
ato cabalístico da Criação: nós devemos abrir um espaço em nós mesmos (um “tsimtsum”
pessoal” por assim dizer) para que outro diferente de nós possa habitar. “No
princípio havia apenas eu...” Ele e o Rab. Steinsaltz enfatizam a importância de não se perder a própria identidade e de reconhecer a identidade do outro. Do atrito de duas identidades distintas surge então a energia, as faíscas
explosivas do amor. E isso faz todo sentido: se devemos “amar o próximo como a
nós mesmos” como vamos respeitar a individualidade do outro se não respeitamos
ou mesmo cultivamos nossa própria individualidade? O Rab. David Aaron coloca "Se
digo 'sim' apenas porque não consigo dizer 'não', não estou em um
relacionamento. Perdi minha liberdade, minha identidade e meu senso de
individualidade. Por outro lado, se tenho vontade de dizer 'não' porque tenho
necessidade de afirmar minha independência, não aprecio que somos na verdade um
só. Por que dizer 'não' quando compartilhamos um ser? Aqui está uma
oportunidade de expressar nossa unidade. Amor significa que sou capaz de dizer
'não', porque não sou você e você não é eu. No entanto, escolho dizer 'sim'
porque somos um. Não há conflito ou competição, nenhuma luta por liderança
absoluta. Embora sejamos indivíduos distintos e muito diferentes, somos um e
nos amamos." Isso é bastante profundo.
Se
perdermos nossa individualidade, perdemos a nossa capacidade de cumprir nosso
mazal, nosso destino. O Rab. Steinsaltz afirma que "a pessoa mais
'elevada' do mundo não pode cumprir a missão da pessoa mais 'rebaixada'" Quando chegarmos ao Mundo Vindouro, o Eterno não
nos perguntará algo do tipo “Fulano, por que você não foi como Moisés, como
David, como Abraão, ou Isaac ou Jacó?” Ele nos perguntará “Fulano, por que você
não foi Fulano?” Este é um ensinamento da Ética dos Pais. Muita das vezes somos intransigentes
consigo mesmo. Somos fundamentalistas contra nossa individualidade e muito mais
contra a individualidade dos outros.
Por
definição, fundamentalismo é “atitude de intransigência ou rigidez na
obediência a determinados princípios ou regras”. Assim sendo, pode-se pensar em
fundamentalismo judaico, cristão, muçulmano, ateu, LGBT, etc. Qualquer tipo de
comportamento humano é passível de ser fundamentalista. Vemos um período assim
na própria história do povo de Israel. No período entre a Revolta Macabéia e o
nascimento de Yeshua, o poder passou dos gregos para os judeus, mas depois os
judeus perdem sua soberania para os Romanos. E o que aconteceu nesse intervalo?
Abba Eban coloca que esse período foi marcado pelas expansões territoriais engendradas
pelo rei e sumo-sacerdote João Hircano, seguido posteriormente por seus filhos,
que era sobrinho do próprio Judá Macabeu. Ele cobrava impostos pesados do povo
e os investia em poderio militar. Chegou a anexar os territórios da Samaria,
Transjordània e Iduméia. Além disso, forçou que esses povos dominados fossem
obrigados a praticar o Judaísmo como religião, algo completamente proibido pela
Torá, ou seja, de forçar alguma pessoa a cumprir a Torá. Isso teve um alto
custo para o próprio povo judeu: Herodes era um idumeu que fora forçado a
cumprir a Torá. Portanto, ele nutria um ódio todo especial contra o nosso povo
e colocou esse ódio em prática. Pouco antes do nascimento de Yeshua, os
saduceus armam contra o próprio povo e ajudam os Romanos a dominar sobre
Israel. Talvez esse episódio da história de Israel seja bastante desconhecido,
mas houve sim fundamentalismo judaico no passado. Na Idade Média vemos um forte
fundamentalismo cristão, e mais recentemente, fundamentalismos islâmicos,
político, ateu, LGBT, etc. Todos esses movimentos fundamentalistas são chamados
pelo Rab. Sacks de o “Espírito de Platão”, ou seja, "o que é diferente de
mim me ameaça, devo destruí-lo". E esse destruir o diferente é
necessariamente “não amar o próximo”.
A
estrutura de pensamento que domina todo o ocidente, das religiões às ações
políticas e científicas, é uma estrutura de pensamento grego. Oras, será que ao
sair de uma estrutura de pensamento grega deve-se apenas colocar um recheio
judaico? Ou será que é importante mudar a estrutura de pensamento de grega para
judaica? Eu diria que não é apenas importante: é essencial. Vejamos agora a questão
da diferença entre Mandamentos e Cercas. Mandamento é aquilo que a Torá diz que
tem que ser, e não é discutível. As cercas são colocações pessoais, autolimitações,
visando-se que não se saia do caminho proposto pela Torá. Assim, como exemplo,
um ex-alcóolatra tem como cerca o nunca comer um bombom de licor, pois comer um
desses pode-se tornar motivo de grande pecado para ele. Mas não é por isso que
comer bombom de licor se torna um pecado: ele não pode exigir essa dieta de
mais ninguém além dele mesmo. Quem tem dificuldade nessa área é ele, não os
outros. Para muitos, comer um bombom de licor é um prazer lícito. Caso
contrário, acaba-se entrando em doutrinas que fogem da Torá e que afirmam
coisas do tipo “jogar futebol é pecado” ou “mulheres que usam maquiagem
são pecadoras”. Isso é um completo absurdo. A Torá permite tudo isso. Mas além
de se imporem regras absurdas, as pessoas querem que os outros as cumpram,
colocando um peso desnecessário, um peso que está fora dos padrões da Torá nos
outros. Ninguém fica mais elevado espiritualmente pelo simples fato de não usar
bermuda, ou de não escutar determinado tipo de música ou ver determinado filme.
Claro que ninguém irá de bermuda pra um Serviço da Sinagoga, nem irá escutar musicas ou assistir filmes que falem de idolatria. Entretanto, a Torá não nos proíbe de ir ao
cinema, de escutar musicas de estilos diferentes e de usar bermudas. São
exemplos simples, entretanto, bons exemplos. Se alguém se abstém de escutar
Rock n' Roll, ótimo. Mas ele não pode exigir isso de mais ninguém, pois a Torá não proíbe
escutar Rock. Entretanto, alguém que teme o Eterno não deve escutar músicas de
Rock que falem de idolatria ou que blasfemem contra o Eterno – músicas
que também existem no meio do Rock. Só como título de exemplo, existem vários judeus, até mesmo
rabinos, que fazem parte de bandas de Rock (vide o chassídico Menachem Herman cantando “Sweet Home, Sweet Jerusalem” – clique aqui no link). Em Romanos 14:3, Sha’ul afirma que “quem
come verduras não julgue o que come carne, nem vice-versa”. Creio que devemos
ir por aí. Um outro exemplo: o que é pior? Fumar um cigarro ou comer carne de
porco? Bom, a Torá proíbe categoricamente o comer porco, mas não nos proíbe de
fumar. Existem diversos rabinos e judeus que fumam, por exemplo. Mas fumar
pode-se tornar um grande pecado? Sim, pode. Fumar no Shabat e nas Santas
Convocações é um grande pecado, pois é proibido acender fogo nesses dias.
O
Rabbi Akiva e seus discípulos exemplificam isso no lamentável episódio da praga
de mortandade. Rabbi Akiva ensinava que devemos “amar ao próximo como a nós
mesmos”. Então seus discípulos entenderam que “amar o próximo como a si mesmo”
significava “não deixe o teu próximo errar”. Assim, se corrigiam a todo
momento. Mas a coisa foi ficando mais séria, e, visando impedir que o próximo
cometesse um erro, começaram a se agredir fisicamente. Isso desagradou o
Eterno, e os discípulos começaram então a morrer, morrendo 24.000 deles, terminando
essa praga em Lag BaOmer. E é esse tipo de erro que não devemos cometer. Não
devemos colocar ou impor nossas próprias cercas nas demais pessoas.
A
Torá nos ensina que não devemos aprender sobre os costumes idólatras dos outros
povos. Não deve haver sequer ecumenismo. Entretanto, não podemos desprezar os
demais povos. E cada um deles deixou um boa contribuição para a humanidade, que
nós judeus utilizamos. Os ternos (tão usados ternos pretos e camisas brancas)
foram inventados por franceses católicos da corte do rei Luís XIV no século
XVIII. Os chineses inventaram o papel-moeda, bússola, garfos, macarrão,
carrinhos-de-mão, pipas, escova de dentes e papel-higiênico. Os árabes, o
hábito de beber café, xampu e instrumentos cirúrgicos (muito semelhantes ao que
usamos até hoje). Protestantes criaram o
automóvel e a caneta esferográfica. O Facebook e a lâmpada foram criados por
ateus. Um hindu inventou o computador pessoal. Os gregos, a medicina e o método
científico. Os óculos então devem ser um
dos objetos mais “pagãos” que existem: o vidro foi criado pelos egípcios, o
óculos pelos gregos, sendo posteriormente aperfeiçoados por monges católicos e
muçulmanos. Quem vos escreve usa óculos e talvez você que está lendo também.
O
Rab. Jonathan Sacks pondera que existe 1 versículo para "amar o
próximo" e 36 versículos para amar o estrangeiro. Os sábios da Mishná
afirmam que o canto do campo, as espigas caídas devem servir para os pobres,
até mesmo os pobres de outros povos, ainda que estes sejam idólatras. Na Ética
do Sinai temos o episódio de Pai Abraão e o idólatra de 70 anos de idade. Pai
Abraão pede que este homem apenas agradeça o Eterno pela refeição que teve, mas
ele se recusa. Abraão então o expulsa com raiva. O Eterno então pergunta a Abraão:
“Eu tenho suportado esse idólatra habitar em Mim por 70 anos e você não pode
suportá-lo por cinco minutos?” Quando os egípcios se afogaram, os anjos
quiseram comemorar. Mas o Eterno os proibiu e lhes disse: “Minhas criaturas se
afogaram e vocês estão celebrando?” O Eterno ama a todos os povos, Baruch HaShem.
Assim,
volto a minha pergunta inicial: existe dignidade em ser cristão? Existe
dignidade em ser muçulmano? Ou mesmo judeu? Ou ateu? Ou homossexual? É claro que existe, em
todos os casos. As pessoas não representam os erros de seus movimentos. Todas
elas são a Imagem do Eterno. E será que existe dignidade em ser à Imagem do
Eterno? É óbvio que sim. O Eterno nos deu liberdade. Quem somos nós para querer
se colocar no lugar dEle, que Ele não permita, e querer podar a liberdade dos
outros? Ainda, há espaço para o Bnei Noach no Judaísmo – os rabinos ensinam que
não há necessidade de se tornar um judeu! Segundo o site do Chabad, o próprio Maimônides
era o médico pessoal do Grande Vizir Alfadhil e do Sultão Saladin, ou seja ele
cuidava da vida e da saúde desses lideres muçulmanos. Há dignidade em ser
judeu, cristão, muçulmano, ateu, etc, pois há dignidade em ser a Imagem e
Semelhança do divino.
O Rab. Sacks
ensina que a grande diversidade de produtos que existe no Mercado o engrandece
e não o diminui. Nossas diferenças também nos engrandecem: cada povo contribuiu
com sua própria cultura para a humanidade. Ai de nós se todas indústrias
produzissem os mesmos produtos. Esse exemplo serve para mostrar que nossas
diferenças nos engrandecem, ensina o Rab. Sacks. As relações de comércio sempre
foram uma alternativa à guerra.
E como usar a
individualidade para amar o próximo? Aqui entra a criatividade. Creio que cada
um tem seu próprio pedacinho do mundo pra consertar. Hoje a internet facilita
muito isso também. Basta querer, procurar, se informar que as possibilidades de “colocar
a mão na massa” surgem. Que HaShem nos ajude nesse sentido.
Edgard MacFraggin'